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sábado, 29 de maio de 2010

Lições de pertinácia

26/05/2010 16:39:28
Elias Thomé Saliba

Ataviados com verdades triviais como o “triunfo do mercado”, o “fim da história” ou a “marcha da globalização”, entramos no século XXI com um ar de superioridade, relegando as lembranças do século XX ao baú dos extremismos políticos, dos erros trágicos e de escolhas irracionais. Não chegamos a esquecer a história, já que nunca inauguramos tantos memoriais, mausoléus, museus e monumentos, reais ou virtuais. Até incentivamos os estudantes e cidadãos a aprenderem lições do passado pelo prisma particular do seu próprio sofrimento, ou do sofrimento dos seus antepassados, resultando numa memória de fragmentos múltiplos e separados (judeu, polonês, sérvio, armênio, asiático, afro-asiático, palestino, irlandês, homossexual), cada um marcado pelo sua própria condição de vítima. Onde, quando e por que perdemos nosso quadro de referências em troca desses talismãs triviais e dessa esmigalhada memória seletiva? Este é o foco candente de Reflexões sobre um Século Esquecido, 1901-2000 Objetiva, 504 págs., R$ 59,90), uma coletânea de 24 ensaios do historiador Tony Judt, escritos entre 1994 e 2006, nas livrarias brasileiras a partir de quinta-feira 27. Nascido em Londres, de pais descendentes de rabinos lituanos, Judt passou alguns anos de sua juventude num kibutz, em Israel, até 1967, quando a Guerra dos Seis Dias o obrigou a voltar à Inglaterra. Formou-se em Cambridge, mas realizou suas primeiras pesquisas em Paris, onde publicou dois livros, em 1990 e 1991, sobre a trajetória dos intelectuais franceses, que provocaram mais polêmica em terras gaulesas do que inauguração de lanchonete McDonald’s. Um deles, Passado Imperfeito, foi publicado no Brasil pela Nova Fronteira em 2007. Seu Pós-Guerra (Objetiva, 2008), uma das pesquisas mais completas sobre a história europeia, só não ganhou o Pulitzer de 2006 porque foi visto, por críticos afoitos, como uma acusação a Israel por esvaziar o significado do holocausto. É, desde 1995, professor da Universidade de Nova York. Mas, em 2008, recebeu o triste diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica, ficando com o corpo quase totalmente paralisado no final de 2009. Com raras exceções, a mídia alardeia tantas notícias sobre a fatalidade de sua doença que, não fosse sua aparição pública (em cadeira de rodas e cheio de aparelhos) em outubro passado, para uma palestra, por pouco não lhe traçariam um precoce obituário. E se o precoce obituário vier, não será por falta de pragas rogadas pelos seus inúmeros críticos. Judt nunca abandona a lucidez em troca daquelas teorias sistêmicas que obscurecem partes do cenário histórico. Logo após a Guerra dos Seis Dias, publicou Vitória Sombria, um ensaio no qual alfineta o orgulho renitente de Israel e sua retórica de autoveneração e exclusividade, incompatíveis com o legado ético do judaísmo profético. Por causa do ensaio, o historiador acabou defenestrado do conselho editorial da New Republic. Em 2006, noutro artigo, Judt demonstrou como o hábito de enfiar qualquer crítica estrangeira no mesmo saco do antissemitismo ainda está entranhado nos instintos políticos israelitas. Para ele, a narrativa de vitimização nacional virou uma espécie de “disfunção cognitiva coletiva” da cultura política daquele Estado. Judt mostra que as gerações mais jovens não percebem como os horrores da última guerra europeia podem ser invocados para autorizar ou perdoar comportamentos inaceitáveis de outro tempo e lugar. Aos olhos do mundo esclarecido, o fato de a bisavó de um soldado israelita ter morrido em Treblinka não é desculpa para o tratamento desrespeitoso deste a uma mulher palestina que deseja passar por uma barreira de estrada. Um simples “lembrem-se de Auschwitz” não é mais uma única resposta aceitável. A repercussão dos dois ensaios, incluídos no presente volume, foi enorme e, depois deles, o historiador tornou-se persona non grata em vários países. A lista de antipáticos só aumentou quando Judt escreveu a apresentação do livro póstumo de Edward Said From Oslo to Iraq and the Road Map, com o título de Um Cosmopolita Desenraizado, incluída nesta coletânea, alinhando-se ao autor de Orientalismo na defesa de um Estado único e secular, para israelitas e palestinos. Apesar de discordar de algumas idéias de Said, não deixou de solidarizar-se com este quando a Universidade de Colúmbia sofreu pressões internas e públicas para censurar e até afastar Said, graças às suas intervenções em defesa dos palestinos. Judt admira o impulso humanista de Said que o punha em conflito aberto com um tique ocasional de intelectuais engajados – a aprovação entusiástica da violência, geralmente a uma distância segura e sempre à custa dos outros. O “professor do terror”, como os inimigos chamavam Said, foi na verdade um crítico bastante severo da violência em todas as suas formas. Se Judt já concordava com o acurado diagnóstico da situação de conflito no Oriente Médio feita por ele naquela época, o diagnóstico do próprio Judt não é menos contundente: “Dois povos, cada um sustentado pela sua narrativa vitimizada exclusiva, competindo indefinidamente sobre os cadáveres de seus filhos pelo mesmo minúsculo pedaço de terra. Um deles é um Estado armado, o outro um povo sem Estado, mas de resto, de modo deprimente, são semelhantes: que é, enfim, a história nacional palestina senão um espelho recriminador do sionismo, um conto de expulsão, diáspora, ressurreição e regresso?” São páginas de pílulas que servem não para “refrescar” nossa memória do século XX, antes para espicaçá-la. Há um longo ensaio sobre Henry Kissinger, “o maior ilusionista” da política externa norte-americana, outro sobre os impasses da história da Romênia no pós-guerra e um inspirado exame crítico da trajetória de Tony Blair, o “gnomo no jardim” na política britânica. Mas os melhores ensaios são dedicados a lembrar os intelectuais mais notáveis desta esquecida República das Letras. Lá estão Arthur Koestler, Primo Levi, Albert Camus, Leszek Kolakowski, Hannah Arendt, Eric Hobsbawm, Bronislaw Geremek. Todos pertencentes à derradeira legião de personalidades europeias formadas nos horrores da Segunda Guerra Mundial. Os ensaios não rasgam seda ou fazem elogios fúnebres. São textos cerrados, revelando detalhadíssimo conhecimento da trajetória e da obra de cada um. Judt qualifica as Memórias póstumas de Louis Althusser (nas quais o filósofo francês narra como estrangulou sua mulher Helène, em 1980) como obra de estranha qualidade hermética, que lembra mais um “escolástico medieval de quinta categoria”. Disseca os “esforços tenazes e interesseiros” do historiador inglês E.P. Thompson para “salvar o socialismo das deficiências do marxismo, para salvar o marxismo dos fracassos do comunismo e para salvar o comunismo dos seus próprios crimes”. Nem Hobsbawm escapa de sua pertinácia crítica. No capítulo “O romance do comunismo”, Judt o reconhece como um dos maiores historiadores do século e, sobretudo, como um grande escritor. Argumenta que Hobsbawm é admirável em sua fidelidade ao comunismo, mas, “para fazer algum bem no novo século, devemos começar dizendo a verdade sobre o antigo”, e um historiador do seu quilate não pode mais se recusar a encarar o demônio e chamá-lo pelo nome: o stalinismo e todos os seus crimes hediondos. Em entrevistas publicadas em 2009, Hobsbawm respondeu que as críticas de Judt eram improcedentes, pois em A Era dos Extremos encarava o problema, criticando-o e firmando sua posição. Hobsbawm ainda retrucou que condenava sobretudo “aqueles intelectuais anticomunistas que hoje têm apenas uma bandeira única, a de serem exclusivamente anticomunistas, esquecendose completamente das ideias pelas quais lutavam”. “Judt deseja apenas que eu diga que estava errado – e não vou satisfazê-lo”, finalizou Hobsbawm. A polêmica não rendeu, parando nessas tantas cutiladas curtas, até porque logo depois Judt cairia doente. É pena. Pois o debate poderia se alongar, ao refletir sobre o imenso abismo ético que se abriu entre os intelectuais europeus do “Leste” e os “Ocidentais” em razão da própria história e da experiência de cada um com o comunismo. O abismo se mantém. De qualquer forma, provocações inteligentes não faltam e é difícil resistir à solidez e à clareza do estilo de Judt. Ele realiza uma anamnese brilhante da história do século XX e tem sempre algo a nos dizer, embora a atual doença talvez o impeça efinitivamente. Faltou apenas aquele grãozinho de leveza, de humor e de autoironia que Mark Twain sempre cobrava de todo grande historiador e que ele próprio, como escritor, nunca abandonou. E não custa lembrar que, já desenganado por uma doença terminal, Twain sorriu ao ler seu próprio obituário num jornal, não deixando de registrar sua derradeira ironia: “As notícias sobre a minha morte são muito exageradas”. (Foto: James Leynse/Corbis/Latinstock)

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